domingo, 28 de julho de 2019

O SUPEREGO FREUDIANO E A REAÇÃO ÉTICA DA PSIQUE HUMANA JUNGUIANA


Jung então discute em extensão o problema do conceito freudiano de superego, isto é, a explicação freudiana a respeito de sentimentos de culpa, consciência pesada e tendências éticas no homem. Jung descobre que isto coincide com o que ele chama de código moral coletivo que em nossa sociedade se combina com a tradição religiosa patriarcal judaico-cristã. Em casos individuais esse código pode funcionar em parte inconscientemente, acarretando toda espécie de sentimentos de culpa e complicações, inibições ou motivações para agir, o que é resumido pelos freudianos como sendo o
fenômeno do superego.

Nesse sentido, nós junguianos não negamos o fenômeno, pois ele existe e é o código moral coletivo que tanto pode ser reconhecido conscientemente pelo indivíduo, como pode exercer uma pressão inconsciente ou semi-inconsciente sobre suas motivações.

Mas, num exame mais minucioso, esse superego parece ser uma formação histórica e por isso não responsável pelo problema ético como um todo, mas somente por uma parte. Em outras palavras, o que Jung chama de REAÇÃO ÉTICA DA PSIQUE HUMANA não é idêntico ao que os freudianos chamam de SUPEREGO. Pelo contrário, os dois conceitos podem até colidir e se opor. Jung expressa o ponto de vista de que estamos sob a pressão de dois fatores: a do código coletivo ético, que varia de nação para nação e, geralmente, dita nosso comportamento ético, e a de um impulso moral pessoal, que é individual e não coincide com o código coletivo. Naturalmente, quando ambos os fatores coincidem, torna-se difícil diferenciá-los.

Suponhamos, por exemplo, que você esteja furioso com uma pessoa, com vontade de matá-la, mas você reconhece que em condições normais, isso é algo que você pessoalmente não poderia fazer. Será que é este o código geral coletivo falando dentro de você, ou será seu próprio lado ético pessoal, seu próprio sentimento que o impede? Num caso assim não podemos fazer uma distinção. Pessoalmente, pode-se dizer que mesmo que não existisse nenhum observador, polícia ou código moral, não se faria tal coisa, mas isso é difícil de provar. O fato é que você não pode fazê-lo porque algo dentro de si o proíbe, e isso é tudo. O fato de esses dois fatores, o impulso pessoal a uma reação ética e o código moral, não serem idênticos, só é óbvio quando existe a chamada colisão de deveres. Como vocês sabem, Jung diz que realmente não é difícil saber o que se deve fazer, desde que não haja colisão de deveres. A dificuldade surge quando o que quer que se faça é meio certo e meio errado, sempre com um aspecto parcialmente errado. Um problema típico é aquele com que se defronta um médico que não sabe se deve ou não contar ao paciente que está com um carcinoma. Se não conta a verdade, mente, mas se provocar um choque mortal no paciente poderá causar-lhe um grande mal — e então, o que fazer? O código moral não responde a tal pergunta. Alguns colegas dirão que não se deve jamais contar, outros que se deveria falar a verdade, que a longo prazo o choque seria melhor. Mas não existe nenhuma regra ética geral e aí está a colisão de deveres: o de contar a verdade e o de poupar o paciente.

Através de exemplos infindáveis desse tipo e outros mais complicados, subitamente nos damos conta de que o código ético não é a única regra para o nosso comportamento.

Em certos casos, mesmo que haja uma resposta clara a respeito do que se deve fazer, podemos ter um sentimento forte de que fazê-lo seria imoral para nós. Então ficamos num mato sem cachorro e daí percebemos que realmente existem duas coisas que ditam o comportamento humano: o código ético coletivo que também podemos chamar de superego freudiano e a reação moral pessoal do indivíduo. A última, que às vezes coincide com o código coletivo, geralmente é conhecida como a voz de Deus: os romanos a chamariam de “genius”, Sócrates diria “meu daimon” e os índios Naskapi, da península do Labrador, a chamariam de “Mistap'eo”, o grande homem que vive no coração de cada um. Em outras palavras, é uma figura que poderíamos chamar de arquétipo do Self, o centro Divino da psique que em outras culturas naturalmente adquire nomes e conotações diferentes. Se esse fenômeno surge dentro de nós, geralmente temos um estranho sentimento de certeza com relação ao que fazer, não importando o que o código coletivo possa dizer a respeito. Em geral a voz não somente diz o que fazer mas inclusive cria uma convicção pela qual o indivíduo poderá até morrer, como aconteceu a Sócrates e a vários mártires cristãos.

Se essa voz interior ditar algo excessivamente nobre, na linha do código ético coletivo, então ninguém se preocupará mas achará incrível, maravilhoso, correto, heróico e assim por diante. Infelizmente, porém, na vida prática, como vemos todos os dias no trabalho de análise, esta voz de Deus, ou instinto interior, pode às vezes ditar algo absolutamente chocante.


MARIE-LOUISE VON FRANZ - A SOMBRA E O MAL NOS CONTOS DE FADA

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